quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A conta chegou

Não faltam motivos para o Twente estar de cabeça baixa (VI Images)

Um fim turbulento na temporada passada, incluindo perda de três pontos durante o último Campeonato Holandês, por fracassar no cumprimento de um plano de reestruturação financeira. Vendas de vários jogadores durante a janela de transferências do verão europeu, para minorar o peso das dívidas. Início péssimo de temporada: é o 15º colocado da Eredivisie. Na última rodada, uma goleada inapelável aplicada pelo Feyenoord (5 a 0). Enfim, não podia estar pior a situação atual do Twente.

Mas ficou. Na terça-feira, a história da decadência veloz que vive o clube de Enschede ganhou mais um capítulo. O site Football Leaks vazou um contrato entre a agremiação e a Doyen Sports Investments, fundo de investimentos com sede em Malta. O acordo fechado em fevereiro de 2014 (que você pode ler aqui na íntegra, em inglês) diz que a Doyen teria, e tem, direito à comissão na venda de alguns jogadores do elenco dos Tukkers. Dois deles se transferiram ainda em 2014: Quincy Promes e Dusan Tadic. Mais três foram vendidos na última janela: Luc Castaignos, Bilal Ould-Chikh e Younes Mokhtar.

O problema está nos dois que seguem sob contrato com o Twente: os volantes Shadrach Eghan e Kyle Ebecilio. Caso não sejam vendidos, o clube teria de pagar à Doyen uma multa por cada um: Ebecilio, atualmente emprestado ao Nottingham Forest, valeria 780 mil euros ao grupo de investimentos, enquanto Eghan, reserva na equipe holandesa, custaria 650 mil euros ao Twente. Porém, o regulamento da FIFA para transferências é claro: um fundo de investimentos não pode ter direitos sobre jogador algum. 

Resultado: a comissão de licenciamento da KNVB, a federação holandesa, já advertiu que investigará os procedimentos surgidos do contrato. Dependendo das conclusões, em caso de punição, o Twente pode perder pontos no campeonato atual, no mínimo. Ou pode até ter cassada a licença profissional para disputar competições, no máximo. O vazamento do contrato com a Doyen foi tão destrutivo para a diretoria do clube que Aldo van der Laan, presidente interino, renunciou ao cargo na mesma terça da revelação.

A história mal explicada com a Doyen é mais um capítulo numa história que começou a eclodir ainda em 2014. Mas que se iniciara ainda antes, desde o título holandês da temporada 2009/10. Na verdade verdadeira, aliás, vem desde 2003: neste ano, o Twente correu sério risco de falir. Foi quando o empresário Joop Munsterman comprou o clube. Aos poucos, modernizou-o. O antigo Arke Stadion foi reformado, teve a capacidade ampliada, e virou o Grolsch Veste atual, com capacidade de 30 mil espectadores. 

Os resultados em campo também foram crescendo de 2003 em diante. Em 2007/08, houve um primeiro grande salto: nos play-offs vigentes à época para a Liga dos Campeões, a equipe de Enschede eliminou o Ajax, vice-campeão na temporada regular, e classificou-se para a fase de play-offs preliminares da Liga dos Campeões 2008/09. Nesta temporada, ainda foi à final da Copa da Holanda - perdeu para o Heerenveen -, e conseguiu o vice-campeonato na Eredivisie. Finalmente, em 2009/10, o apogeu: a conquista do primeiro título holandês da história do clube, num time em que brilharam o goleiro Sander Boschker (jogador com mais partidas na história do clube, que defendeu entre 1989 e 2003, e 2004 a 2014), o zagueiro brasileiro Douglas (hoje, naturalizado holandês), o meio-campista Kenneth Perez e os atacantes Bryan Ruiz e Blaise Nkufo (este, o maior goleador da história dos Tukkers).

O problema é que com os títulos e o crescimento, também veio a ilusão de grandeza. Ilusão expressa em números colocados numa primorosa matéria do site catenaccio.nl, que sinalizaram dois grandes erros para qualquer clube que pretenda ter as finanças saneadas. O primeiro: gastar muito em compras sem tentar lucro nas vendas. Foi o que aconteceu em alguns casos. Por exemplo: em 2011, o clube gastou 3,5 mi de euros no sueco Emir Bajrami; 7 mi no atacante austríaco Marc Janko; 2 mi no lateral direito venezuelano Roberto Rosales… e só teve lucro ao vender Nacer Chadli ao Tottenham, por 8,15 mi, após compra por 300 mil euros. De resto, o dinheiro gasto não foi reposto. Janko, por exemplo, foi cedido ao Porto por 3 mi. Ou seja, prejuízo de 4 milhões com o austríaco.

O segundo pecado capital do Twente foi oferecer altos salários, fora do padrão do futebol holandês. Em 2009/10, o clube gastou cerca de 20 milhões de euros com pagamentos aos atletas do elenco. Em 2011/12, o gasto foi de cerca de 30 milhões. O que representava… mais de 60 por cento do orçamento do clube. Para que se tenha uma ideia do exagero, em 2011/12, o Ajax bancava os salários dos jogadores com 43,2% do dinheiro. O Feyenoord, 44,5%.

Pior: os investimentos na base não renderam lucros em vendas futuras. Tanto que só Ola John e Quincy Promes renderam algum interesse em mercados mais aquinhoados financeiramente. E outras compras em mercados alternativos também fracassaram, deixando o clube posteriormente. Casos não faltam: o atacante sul-africano Bernard Parker, o atacante australiano Nikita Rukavytsya, o goleiro português Daniel Fernandes...

Resultado: sabendo o tamanho do furo no barco dos Tukkers (furo causado por várias decisões suas, diga-se de passagem), Joop Munsterman renunciou à presidência ainda no final da temporada 2014/15. E já na última janela de transferências, o Twente implorava por negociações de gente que aliviassem a folha salarial. O supracitado Ebecilio foi cedido ao Nottingham Forest. Sem espaço nos titulares, Younes Mokhtar foi para o Al Nassr, da Arábia Saudita, a preço de banana (1 milhão de euros). Jesús Corona, cada vez mais titular na seleção mexicana, era cobiçado pelo Porto. E por 10 milhões, lá se foi o meio-campista para o Dragão, vestir a alviazul tripeira. Castaignos, destaque na temporada passada, foi quem mais rendeu: 2,5 milhões, na transferência para o Eintracht Frankfurt. 

Já pressionado desde a Eredivisie passada, o treinador Alfred Schreuder não aguentou ter três derrotas nas quatro primeiras rodadas, e foi demitido. Em seu lugar, René Hake (interino logo efetivado) tem um elenco atual com muita gente vinda direta da base. Principalmente na defesa. As lesões de Nick Marsman e Sonny Stevens abriram caminho para o goleiro Joël Drommel, 19 anos. Há ainda o lateral direito Hidde ter Avest, 18 anos (titular da seleção holandesa sub-19); os zagueiros Peet Bijen (20 anos), Joachim Andersen (19 anos) e Jeroen van der Lely (19 anos).

Ainda há novatos emprestados de outros clubes, como os atacantes Thomas Agyepong (ganês vindo do Manchester City) e Michael Olaitan (nigeriano cedido pelo Olympiacos). Para constar, um dos membros do elenco é brasileiro: o zagueiro Bruno Uvini, emprestado pelo Napoli, que foi para o banco de reservas.

Ainda há os titulares absolutos. Como o meio-campista chileno Felipe Gutiérrez, presença frequente nas convocações e jogos da seleção campeã sul-americana. E Hakim Ziyech, um caso à parte: o meio-campista marroquino (chegou a ser convocado para treinar com a seleção holandesa, mas escolheu defender os magrebinos) é o destaque absoluto do Twente na temporada. Dos 13 gols da equipe na temporada da Eredivisie, esteve envolvido em 11 - marcou sete, e fez a assistência em quatro.

Sabendo de seu valor e da situação do Twente, Ziyech já anunciou à FOX Sports holandesa: "Estou aberto [a ofertas]. Se surgir uma oferta para a qual o clube não diga não, eu saio". Talvez isso ocorra em janeiro. Será mais um baque neste momento que justifica o que disse o diretor Gerard van der Belt, em nota divulgada pelo clube: "O Twente se encontra na fase mais difícil de seus cinquenta anos de história". Completados neste 2015. A conta dos anos de glória chegou. E de maneira impiedosa.

Um comentário:

  1. Cara... se o Brasil fosse um país realmente sério, quantos clubes estariam disputando a primeira divisão se tivessem que pagar suas contas como Twente?

    Realmente os dirigentes do futebol são mesmo bem parecidos. Não importa o país...

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